O som dos meus passos ecoava — pesados e abafados — na terra seca. Meu corpo se movia como se fizesse parte de um sistema de engrenagens, repetindo o mesmo movimento a cada instante, mas sem a intenção de quem ainda está no controle. Eu caminhava devagar, sem direção. Apenas caminhava, como se isso fosse o único propósito da minha existência.
Eu caminhava no meio da horda em silencio. Meus olhos refletiam
um mundo desbotado, em que a vida havia sido engolida por um buraco negro. Os
sons ao meu redor estavam distorcidos. O vento já não tinha a suavidade das brisas
que um dia eu conheci. Agora era apenas um assopro distante, que mal tocava o
que sobrou da minha pele.
Meus olhos vagavam sem foco. A paisagem a minha frente era
uma tela distorcida, uma pintura de cores apagadas e desbotadas. Os campos, que
antes eram vivos, agora estavam todos secos, cobertos de terra rachada e
árvores mortas. O ar estava pesado, como se o próprio céu estivesse de luto.
Não havia nada de vivo por ali. Nada além de cadáveres caminhando.
Os outros caminhavam ao meu lado, grotescos e deformados. Um
monte de carne em movimento. Cada um carregava uma expressão vazia, uma mascara
que se tornara parte de quem eram. Caminhávamos como se estivéssemos em transe,
seguindo uma linha interminável. Eu não sabia como funcionava ou o que me
motivava — eu não precisava saber. Apenas caminhava como todos os outros.
Caminhávamos em silencio, nossos passos pesados ressoavam na
terra ressecada. Eu não me lembrava de há quanto tempo caminhava. O tempo não
importava mais para mim, nem o futuro. Mas, de vez em quando, algo do passado
me atingia. Uma lembrança.
Eu fechava os olhos — ou pelo menos o que sobrou deles — e
minha visão embaçava, como se eu enxergasse através de uma névoa. Então eu via
um rosto. Não sabia de quem era, mas parecia importante. Ele sorria com os
olhos brilhando com uma vida que eu não conhecia mais. Ai do nada, o rosto
desaparecia, como todas as outras vezes, se dissolvendo como areia entre os
meus dedos. Deixando outra sensação em seu lugar.
A fome era essa sensação. Era a única coisa que eu sentia,
mas não a compreendia. Não sabia mais o que significava a palavra “saciado”,
apenas que a sensação me consumia, arrancando de mim qualquer vestígio de
razão. A fome não era uma questão de escolha ou lógica, era um comando. Um
instinto.
O cheiro de carne humana me despertou da névoa de lembranças.
De alguma forma, eu sabia o que aquilo significava. Havia algo de familiar
naquele odor, algo que me fazia desejar mais. Meus sentidos ficaram aguçados,
mas não de uma forma humana. Eu não reconhecia o cheiro como uma pessoa poderia
sentir — com carinho ou compaixão —, sentia apenas a fome.
Me obriguei a avançar. Eu não sabia o que procurava, apenas
que precisava continuar. O cheiro estava mais forte agora. Eu não sabia de onde
ele estava vindo, apenas que precisava chegar até ele. O cheiro continuou se
infiltrando nos meus sentidos e, com ele, um impulso incontrolável aumentava a
cada segundo.
As horas passaram — ou o que eu imaginava serem horas. O céu
parecia sempre o mesmo, cinza e sem vida. Em um momento, eu percebi que havia um
leve brilho no horizonte. Meu corpo se moveu na direção do brilho sem que eu
precisasse pensar. Algo estava lá. Eu não sabia o que era, mas me atraia.
O cheiro estava muito
mais forte agora. Era completamente diferente de qualquer outro que eu já havia
sentido. Movido por esse cheiro, virei a cabeça lentamente para a esquerda, em
direção a uma figura solitária. Ela estava sozinha, sem nenhuma proteção ou companhia.
Seu cabelo longo balançava com o vento fraco, e suas roupas eram simples, mas com
uma cor vivida, que parecia bilhar no meio de toda aquela destruição.
A fome sempre foi muito clara e dominante, mas agora, havia
algo mais. Algo que fez eu me aproximar dela. Ela parecia tão frágil e vulnerável,
em contraste com o resto do mundo. Eu senti um tipo de... necessidade de estar
perto dela. Não era apenas a fome, nem sequer sabia o que era, mas meu corpo me
levou para perto dela.
Conforme me aproximava, eu a observava de longe. Seus
movimentos eram lentos, hesitantes, como se ela estivesse ciente de que algo
não estava certo, mas ainda assim decidira continuar. Eu me escondi um pouco
atrás de uma pilha de escombros, a observando com uma intensidade que eu nunca
havia sentido antes. Eu não sabia o que estava acontecendo comigo. Havia algo
nela que me atraía, algo que me deixava inquieto, mas ao mesmo tempo me fazia
sentir... mais humano, talvez? Eu não sabia.
Ela parou por um momento, olhando ao redor, talvez sentindo
a minha presença. Mas ela não fugiu. Ela não gritou. Ela simplesmente ficou
ali, imóvel, com o olhar perdido no horizonte, o que a tornava ainda mais
vulnerável aos meus olhos.
Eu me aproximei um pouco mais, ainda sem saber o que essa
atração por ela significava. No entanto, minha aproximação não foi rápida —
como normalmente seria ao caçar uma presa. Não havia pressa. Eu a observava com
um tipo de curiosidade, como se estivesse esperando algo, como se algo dentro
de mim estivesse tentando entender por que ela me afetava de maneira tão
profunda.
De repente, ela se moveu. Com o corpo tenso, ela virou a
cabeça ligeiramente, como se sentisse a minha presença, mas não me visse
claramente. Eu fiquei ali, imóvel, esperando. A sensação de estar sendo
observada, de ser o centro de uma atenção indesejada, pareceu fazer a garota
hesitar. Ela olhou para a frente novamente, mas algo em seu comportamento
mudou. Ela parecia estar começando a entender o perigo, mas, ao invés de fugir,
ela permaneceu ali, como se aguardasse algo.
Eu não conseguia entender o que estava acontecendo. Eu não
sabia o que a garota sentia ou pensava. O que eu sabia era que algo em meu
peito parecia se apertar. Não era a fome — era... algo mais. Algo desconhecido,
mas igualmente poderoso.
A proximidade entre nós aumentou. Eu caminhei para mais
perto, com passos leves e lentos, quase como se o espaço entre nós fosse frágil
demais para ser rompido rapidamente. Eu estava a poucos metros dela agora. Meus
olhos observavam seu rosto, tentando reconhecer algo ali. Havia uma sensação
de... ternura? Proteção? — Não, isso não
fazia sentido. Como eu poderia sentir isso? Que não sentia mais nada,
experimentar algo tão complexo?
Mas eu senti. Algo ali me tocou, uma memória fragmentada de
um tempo em que eu fui humano. E, por um momento, a ideia de devorá-la pareceu
distante. A fome, que sempre foi minha única guia, parecia estar em segundo
plano, ofuscada por algo novo e confuso.
Ela, por sua vez, parecia cada vez mais desconfortável, mas
não se movia. Eu não sabia se ela estava tentando entender o que estava
acontecendo, ou se estava simplesmente esperando. Algo a impedia de fugir, e
isso me deixou ainda mais curioso.
Mas a fome logo tomou conta de mim. A sensação, antes sutil,
agora se tornou mais intensa. Eu não conseguia mais controlar o desejo de
alcançá-la, de tocá-la, de sentir a carne viva. Eu tentei ignorar, tentei
resistir, mas a fome não se importava com os sentimentos que eu estava
começando a experimentar. O desejo insano me consumiu.
Agora, a distância entre nós era mínima. A garota parecia
perceber a mudança na minha postura. Ela olhou diretamente para os meus olhos,
e naquele instante, algo pareceu quebrar entre nós. Não havia mais tempo para
hesitação. Eu senti um impulso violento, e a fome tomou conta de minha mente.
E com isso, eu avancei, sem mais piedade, sem mais
resistência. Eu a segui com a mesma determinação de antes, agora guiado
unicamente pelo desejo de consumi-la.
Conforme eu a perseguia, a visão dela a frente se tornava
mais nítida, e o cheiro dela, doce e vivo, enchia minhas narinas com um desejo
irresistível — cada passo em direção a ela parecia mais pesado que o anterior.
Eu não sabia o que estava sentindo. Não sabia o que era aquela sensação que estava
tentando me impedir de continuar.
Ela corria desesperada, seus passos eram rápidos e
descoordenados, mas ela ainda conseguia manter certa distância de mim. Mesmo
com meu corpo decadente, com movimentos limitados, eu continuava a avançar,
impulsionado pela fome que nunca poderia ser saciada, que não poderia ser
ignorada.
Mas algo estranho estava acontecendo. À medida que eu a
perseguia, flashes de memórias começaram a invadir minha mente.
Eu me vi em um campo ensolarado, sentindo o calor do sol em
meu rosto e o toque suave de alguém ao meu lado — era uma sensação distante,
mas real. Eu sentia a suavidade de uma mão, o som do riso, a visão de algo
bonito. Não conseguia identificar o rosto, mas a sensação de paz e felicidade
era inconfundível. Eu tentei me concentrar naquela lembrança — queria agarrá-la,
entender mais — mas ela se dissipou tão rapidamente quanto surgiu. Tudo o que
restou foi o vazio e o peso da fome.
A visão dela à minha frente voltou a ficar nítida. Eu a
estava alcançando. Ela estava ofegante e seus passos começaram a falhar. Ela
olhou para trás mais uma vez e seus olhos se arregalaram de terror. Talvez ela
soubesse o que estava prestes a acontecer
Eu gritei, ou algo próximo disso, um som gutural e
desesperado que ecoou no vazio ao redor. Meus olhos, vazios de compreensão,
brilharam com uma necessidade primitiva. Eu a queria. Eu precisava dela.
E eu a alcancei.
Com um movimento rápido, quase instintivo, eu a agarrei.
Meus dedos, frios e mortos, envolveram sua pele, e, por um momento, eu hesitei.
O conflito ainda estava ali — eu sentia a carne, sentia a vida nela, e uma
fração de algo que se assemelhava ao carinho surgiu em minha mente. Mas isso
foi fugaz, quase irreconhecível. Algo que eu não podia mais entender.
E então, com um impulso final, a fome me tomou por completo.
Eu a ataquei e meus dentes se afundaram na carne macia com uma força brutal. O
som do ataque foi abafado pelo grito dela, mas eu não ouvi. Nada mais
importava. Eu a devorava com uma máquina de destruição e desejo, enquanto minha
mente se afastava mais e mais de qualquer resquício de humanidade.
O mundo ao meu redor parecia continuar imutável, indiferente
a tudo o que eu havia acabado de fazer. Fiquei parado sobre o corpo sem vida da
garota com minha visão embaçada pela névoa de pensamentos. Não sabia o que eu
era, mas sabia o que havia feito. E o que restava de mim se dissolvia a cada
instante. Uma dor surda, incompreensível, preenchia o vazio que me consumia.
Olhei para os restos dela, agora uma pilha estranha de carne
e ossos. Uma sensação estranha me invadiu. Não era remorso. Não era
arrependimento. Era algo mais. Algo que eu não conseguia entender. A memória
dela — seu cheiro, a suavidade de sua pele, seu olhar — começaram a
desaparecer, como se a neblina tivesse engolido as últimas lembranças da minha
humanidade.
Então, algo tocou minha mente. Não fisicamente, mas dentro
de mim. Uma lembrança fugaz, um sussurro distante, um fragmento quase apagado
de algo que eu tentava alcançar sem sucesso. Me lembrei do brilho nos olhos dela
antes que o terror se instalasse. Foi um estalo, um fio de algo perdido no
tempo, mas que me fez hesitar por um momento.
Quem era ela? Quem sou eu? As respostas não vinham. Minha
mente estava vazia, preenchida apenas pela fome incessante. Tentei me
concentrar, mas tudo o que restava era um eco, um chamado distante que eu não
podia mais alcançar.
O mundo voltava aos poucos. O vento sibilava ao meu redor. A
horda se movia à distância, com os passos arrastados ecoando no silêncio. E,
mais uma vez, eu me perdi.
Lancei um último olhar para o corpo da garota antes de me
afastar. Meu corpo se moveu por conta própria, com a mesma marcha impassível de
sempre. Eu não sabia para onde estava indo, mas sabia que não havia escolha.
Nunca havia. A fome ainda estava ali, constante, sussurrando em minha mente. A
horda estava à frente, e eu precisava segui-la.
O vento frio cortava minha carne apodrecida, mas eu não
sentia. Meus pés pesados se arrastavam pelo chão desolado, seguindo a horda,
passo após passo. O mundo avançava, indiferente, uma paisagem vasta de
destruição e silêncio. E eu era apenas mais uma sombra, mais um fragmento do
ciclo interminável de caça e fome.
Eu não sabia quem eu era. Não sabia quem ela era. Não sabia
se algum dia soube de algo além disso. A memória dela se apagava a cada passo. O
cheiro, o medo em seus olhos — tudo se dissolvia, se fragmentando até restar
apenas o instinto. Apenas a fome. Apenas a marcha.
A noite caiu sobre a horda como um manto de escuridão. O
mundo se afundava no silêncio, encerrando mais um dia.
E enquanto a horda seguia, eu a acompanhava, sem pensar, sem
hesitar. Era apenas mais um na longa linha de mortos-vivos que vagavam,
buscando algo que jamais poderiam encontrar.
Eu desapareci na escuridão, meu corpo se arrastava pelo
caminho sem fim. O mundo girava, indiferente ao que aconteceu, ao que foi
perdido. Apenas mais um pedaço esquecido da história de um ser que nunca mais
encontraria o que procurava. Talvez, no fundo, eu nunca tivesse realmente sabido
o que buscava.
AVISO: Todos os textos postados no blog são ORIGINAIS e de MINHA AUTORIA. Não me importo que reproduzam, desde que deem os devidos créditos. Plágio é crime.
Imagem: PIXABAY
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